O Xavier tem 6 anos. E entrou na escola este ano. Ele é muito esperto, já sabe ler e tem uma curiosidade impressionante. Há dias ele passou longos minutos a descobrir as palavras escritas nos champôs e outros sabões líquidos enquanto estava a tomar banho. Idem com uma publicidade esquecida na mesa:
As..as..as..p..p..pe..pe..ra…ra…ra…pera..pera..peran..da..da..das…. as perandas..as prendas do..do.do pa..pa..pa..pai … as prendas do pai… na…na… nat… natal… as prendas do Pai Natal…
É mesmo engraçado assistir a isto…já que não nós lembramos como éramos na altura em que começámos a ler…
O Xavier entrou para a escola e com isto chegaram as pisaduras e outros palavrões que os miúdos aprendem uns com os outros..
A escola é para aprender, não é? Então pronto… Os pais que se aguentem um pouco mais…não há-de ser nada… Também passaram por isto…
Eu lembro-me do primeiro palavrão que pronunciei na escola, no recreio. Lembro-me como se fosse ontem… e lembro-me perfeitamente que o disse sem saber o sentido desta palavra mas que era importante dizê-lo, apenas para mostrar aos colegas que “fazia parte do grupo”.. Razão simples e obviamente suficiente.
O Xavier vai para escola. E , caso raro, pouco resmunga para ir lá…
Um dia destes estava a ver a televisão com a mãe. As notícias. As imagens pela quais estamos desde já demais habituados : o Afeganistão, imagens belas, símbolos da Liberdade reencontrada. Imagens terríveis de mortos. Imagens que mostram a como se faz a guerra. Ou ainda imagens que podiam envergonhar o Rambo…
O Xavier ouvia, talvez percebendo o que conseguia, do alto dos seus 6 anos. De repente, ele disse que a guerra estava a acabar e que as pessoas do Afeganistão estavam a ganhar.
A mãe perguntou lhe o que ele tinha dito… e o Xavier voltou a afirmar que os afegãos estão a ganhar a guerra contra nós. Gloops..…
A mãe perguntou-lhe como ele sabia isso…porque as coisas não são bem assim… Ele confirmou. A guerra vai acabar mas nós vamos ficar mal…
E a mãe tentou explicar o que se passava: havia um país, o Afeganistão, onde há pessoas muito más, os talibãs que não fazem nada de bem para as pessoas que vivem lá… Eles não querem que os meninos e meninas vão para a escola aprender a ler e escrever, não querem que as mulheres saiam sem o marido, sem estar coberta da cabeça aos pés… há essas pessoas que são um pequeno grupo e o resto das pessoas, que são simpáticas…
A mãe continuou:
– Lembras-te dos aviões que caíram nos prédios na América? Bem, são as pessoas más que fizeram isso. Então os americanos decidiram ir lá, bater nos maus… Agora, são os bons que estão a ganhar…
Mas o Xavier não estava a ficar convencido…há qualquer coisa que ele não estava a perceber… mas o quê?
Ele voltou a dizer que essas pessoas más iam ganhar a guerra… que ele sabia… a professora tinha dito.
– A professora falou com vocês da guerra?
– Sim… respondeu o Xavier.
Só que ela se enganou. De beligerantes. Ou o Xavier misturou um pouco de tudo, segundo os anúncios de filmes americanos da pré-guerra, onde tudo está a correr mal para os americanos mas no último minuto do filme, eles salvam a terra inteira do grande inimigo!.
Quem sabe…
A duvida existe, mas a inocência com a qual o Xavier repetiu o que ele tinha ouvido, deixou francamente pensar que a professora se tinha exprimido frente a um grupo de miúdos, acerca de um tema de que nem sequer percebia.
A dúvida existe mas esta conversa levanta uma (ao menos) pergunta: o que é que vamos fazer na escola se é para aprender coisas absolutamente erradas? Pior, coisas que podem implicar muitos outros problemas tal como o medo do outro, a certeza que todos de um país são os “maus”, que o perigo está a porta.
Outra pergunta é saber se um professor de escola com a rapaziada de 6 anos que só pensa em tazos, deve abordar essas questões da actualidade (quer seja os conflitos, mas também o problema do sida, ou do aborto…) ou se não era melhor guardar isto para os pais…
Há coisas suficientes para aprender na escola. E em vez de falar da guerra, não era melhor ocupar este tempo a ensinar noções de objectividade, de direitos humanos ou simplesmente convidar esses pequeninos a continuar a sonhar mais um pouco.
Michèle Jean-Bart
5/11/2001
michelejb@dao.ua.pt