Um pouco de história…
Na Idade Média, a existência em Aveiro de uma feira anual franqueada tinha vantagens e desvantagens. Para a feira destacava-se o facto de Aveiro ser um porto de mar com um importante sector piscatório, e para a vila o de se encontrar nessa época com sérias dificuldades de povoamento com as salinas em fase de «mortório». Quanto às eventuais desvantagens, tinham a ver com os diversos tipos de calamidades, principalmente as específicas da região, que se abateriam sobre Aveiro até à erradicação das epidemias e estabilização da barra.
Sobre o registo de nascimento da Feira do Março, os documentos datados da época são incertos. Se alguns afirmam que a feira franca foi instituída por decreto régio de D. Duarte, no ano de 1434, outros apontam a sua criação para datas anteriores à década de trinta. Parece, no entanto, que a versão mais exacta da história é aquela que indica D. Duarte como seu fundador, na primeira data indicada, respondendo assim a um pedido de seu irmão, o Infante D. Pedro, que lhe solicitou uma feira, em Maio de cada ano, com a duração de oito dias,
A então feira franca realizou-se pela primeira vez em Março, a pedido dos dominicanos da vila de Aveiro, interessados em valorizar a festa mais solene do mosteiro de S. Domingos que ocorria a 25 de Março. Entretanto, durante o tempo de duração da feira, o Infante D Pedro ordenou que as pessoas poderosas não poderiam viver nem morar em Aveiro. Dizia ser terra de pescadores e mareantes, que ganhavam a vida fora de suas casas, deixando-as desprotegidas, entregues apenas às mulheres da família. O que estava realmente em causa era a política de centralização do Poder que viria a por em acção e o afastamento da pressão da nobreza de todos os sectores possíveis.
Tanto quanto se sabe, antes de se apoderarem do Rossio, os feirantes expunham ao longo da Rua do Cais, hoje conhecida como João Mendonça, até à Praça, e ocupavam os Arcos, antigamente designados como Balcões. De acordo com os elementos disponíveis, só a partir de 1829 é que a Feira do Março começou a ocupar o Rossio, depois de protestos que chamavam a atenção para a estreiteza da rua, a dificuldade causada ao desembarque no cais e para o prejuízo que diziam sofrer os proprietários do outro lado da artéria, a cujas casas os feirantes amarravam as cordas que entendiam úteis ao comércio.
Obedecendo a melhor ou pior organização, os feirantes procuravam expor e vender da melhor maneira, o que não evitava quase sempre uma certa confusão, aliás, típica e cheia de colorido na apresentação dos produtos e mercadorias. Aqui se encontrava por exemplo, entre o gado para alimentação, lavoura e carga: bois, vacas, bezerros, carneiros, ovelhas, cabras. Não muito longe ficava o sector dos arreios, selas, cilhas, guarnições, freios e esporas.
Nos comes e bebes imperava o peixe frito ou cozido, o caranguejo, o berbigão, o pão, azeitonas e pouco mais; objectos de cobre que iam sendo substituídos nas habitações rústicas por peças de barro; metais já trabalhados ou que os artífices locais transformavam em armas, ferramentas, alfaias caseiras e agrícolas; bugigangas de capelistas e sombreiros, espadas, lanças e arcos de besta. De entre uma panóplia enorme de mercadorias, as mais caras eram os panos de cor, as peles de coelho, os couros verde ou curtidos, os picotes, os buréis, os panos de linho, o bragal ou roupa branca de casa, a cera e, principalmente, os escravos.
Era também vulgar encontrar nas feiras divertimentos de muitos géneros: tabernas, bailes, folias, jogos de azar e outras distracções mais ou menos lícitas, como as proporcionadas pelas moças de vila, raparigas de costumes fáceis e de vida difícil, consentidas para atrair os feirantes. Sabe-se que pelo menos no começo do século XVI, durante o tempo de algumas feiras, já não se tocava o «sino de correr», para que feirantes e visitantes pudessem andar de noite a qualquer hora «sem contra eles haver lugar justiça nem se lhes fazer nenhum constrangimento».
A partir do século XV, com as navegações na costa africana, tornou-se frequente o macaco como divertimento. Também apareciam os jograis com as suas cantigas de amigo, de amor, de escárnio ou maldizer, jovens acrobatas: ouviam-se canções acompanhadas por instrumentos de corda e por lá se exibiam ursos amestrados dançando ao som do pandeiro. Com a passagem do século foram surgindo outras atracções, como o teatro e as projecções de «vistas» e cinematográficas, já no nosso século.
Mas, voltando à Idade Média, compradores eram todos com excepção da alta nobreza, que dispunha dos seus próprios circuitos de abastecimento, idênticos aos da Corte, e portanto sem necessidade de permitir que a poeira dos caminhos e dos terrados das feiras sujasse o seu delicado calçado. Lá, iam senhores da nobreza média e rural, membros do clero e, principalmente, a arraia miúda, o bom povo formado por todos aqueles que pelo esforço do seu trabalho produtivo, mantinham a sociedade do tempo. O povo era o principal frequentador, vendedor e comprador das feiras.
De facto, aos nobres competia apenas, e em princípio, defender os outros homens e servir o rei. Porém um dos aspectos a salientar é que no século XVI, haver queixas devido aos cavaleiros, escudeiros e outras pessoas poderosas que iam às feiras fazer compras e que, em vez de pousarem na vila se iam hospedar nas aldeias do termo, onde faziam muito dano «nos pães e nos vinhos», além de outros prejuízos aos respectivos moradores, lesando também os da vila, que com isso não alugavam casas como desejavam.
Martins, Júlio de Sousa – «Feira do Março – Através dos Tempos» – E. da Câmara Municipal de Aveiro